[1] Wenceslau Augusto dos Santos Junior;
[2] Dayvid Souza Santos.
Observa-se ao passar dos tempos mudanças profundas no mundo do trabalho, sobretudo a partir da integração das tecnologias da informação com os setores de serviços e de produtos, cujo desenvolvimento deram origem ao trabalho por plataformas, fenômeno de repercussões globais que abrange em fortes proporções os esforços laborais baseado em localização.
A OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – compreende as plataformas como “transações mediadas por um programa de software de finalidade específica, geralmente projetado para uso em dispositivo móvel ou em um site, ambos, programados por algoritmos”. Ressalta-se que suas aplicações abrangem as diversas formas de usuários que prestam serviços em troca de remuneração.
Até onde se sabe, não existe um único tipo de plataforma digital. Estudos relatam a classificação de ao menos cinco. A seguir, os exemplos: a) plataformas publicitárias – Twitter, Instagram e Facebook; b) plataformas em nuvem (cloud) – AWS e Salesforce; c) plataformas industriais – Siemens e Huawei; d) plataformas de produto – Deezer e Netflix; e) plataformas enxutas – Ifood e 99. No entanto, seus impactos no mundo do trabalho em termos globais são profundos, a exemplo da supressão total de direitos e da proteção social, bem como da transferência dos riscos e custos das operações para os trabalhadores.
No Brasil, no início de 2019, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios realizada pelo IBGE – Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística, 3,8 milhões de brasileiros tinham no trabalho por plataforma sua principal fonte de renda. Já a pesquisa do Instituto Locomotiva demonstrou que, aproximadamente, 17 milhões de pessoas obtêm regularmente algum rendimento por meio do trabalho por aplicativo no Brasil.
A medida que o trabalho de plataforma organizado por empresas avança mundo afora, o mesmo acontece com os litígios movidos por trabalhadores contra essas corporações. Uma parte proeminente destes processos judiciais, concentram-se na natureza da relação entre os trabalhadores da plataforma e as próprias plataformas, uma vez que a relação trabalhador x patrão é negada veementemente pelos empresários do setor. Ressalta-se que a OIT – Organização Internacional do Trabalho – busca construir uma governança global entre governos, empregados e empregadores, para a garantia dos direitos trabalhistas fundamentais: i) liberdade de associação e negociação coletiva; ii) o fim do trabalho forçado; iii) a erradicação do trabalho infantil; e iv) a eliminação da discriminação em termos de emprego e ocupação. Isso passa pela necessidade de pactos institucionais no âmbito internacional altamente complexos devido as características heterogênea em termos de desenvolvimento de cada país.
Regulamentar as plataformas digitais é um desafio de gestores em todo o mundo, uma vez que este modelo de negócio determina, de forma unilateral, os termos e condições de relacionamento com os usuários, e ainda, comumente, classificam especificamente os trabalhadores como “autônomos” ou “contratados independentes”, ou seja, trabalho precário.
Neste ambiente, o Governo Lula inicia seu terceiro mandato em 2023 colocando como uma de suas agendas prioritárias a regulamentação do trabalho por plataformas. Inicialmente, as centrais sindicais foram convidadas a enviar sugestões com objetivo de se pavimentar um framework jurídico sobre o tema. Outras iniciativas devem ocorrer para se encontrar consensos entre os pontos mais quentes da legislação, já que, até o fim deste semestre, segundo o Ministro do Trabalho, o Congresso Nacional deverá aprovar uma legislação sobre o tema.
As inciativas que visam regulamentar o trabalho por plataformas são observadas na França por meio da Lei nº 1088 de 8 de agosto de 2016, que concedeu algum grau proteção social para os trabalhadores, exigindo, por exemplo, que as plataformas paguem os seguros de acidentes de trabalho. Na Colômbia, um projeto de lei apresentado ao congresso afirma que o trabalhador de plataformas é economicamente dependente e sugere a criação de uma categoria intermediária, ou seja, nem autônomo nem assalariado. O projeto de lei prevê ainda o gozo de direitos trabalhistas coletivos, como a liberdade de associação e o direito de negociação coletiva.
A promulgação de leis que regulamentem as plataformas digitais, sejam elas com objetivo de reconhecer prioritariamente a relação entre empregador e empregado, ou de criar uma categoria intermediária, é de fundamental importância para mitigar seus efeitos deletérios sobre os trabalhadores deste segmento. No entanto, estes tendem a continuar sendo submetidos a processos precarizantes, principalmente pelo fato de não possuírem a propriedade da tecnologia a que estas plataformas tradicionais operam. Assim, elas seguem livres para reduzir ainda mais o custo da força de trabalho, ou seja, explorar os trabalhadores e recompor seus níveis de taxa de lucro por meio da reprodução do capital.
É nesta lacuna citada anteriormente que as Cooperativas de Plataforma, organizadas sobre os fundamentos da Economia Solidária, se apresentam como uma alternativa às grandes corporações do ambiente digital e uma solução ao trabalhado subordinado e alienado. Para o professor Trebor Scholz, The New School, em Nova York, nos Estados Unidos, essas cooperativas podem ser de propriedade dos trabalhadores e, portanto, possui os seguintes princípios: a) propriedade – ou seja, a tecnologia é de propriedade coletiva; b) pagamentos decentes e seguridade de renda – todos precisam de pagamento justo e benefícios para sobreviver; c) transparência e portabilidade dos dados – deve haver transparência no modo como os dados são coletados, analisados e estudados; d) apreciação e reconhecimento – existência de bom relacionamento no ambiente de trabalho; e) trabalho codeterminado – envolver os trabalhadores desde a criação da plataforma; f) moldura jurídica protetora – necessidade de uma legislação que ampare os anseios destas organizações; g) proteções trabalhistas e benefícios – todos os cooperados devem possuir proteções sociais e estar submetidos às legislações do trabalho; h) proteção contra comportamento arbitrário – não cancelar os trabalhadores sem garantir sua ampla defesa; i) rejeição de vigilância excessiva – não exercer práticas de vigilância que violam a dignidade dos trabalhadores; j) direito de se desconectar – o trabalho digital decente deve ter limites bem definidos, portanto precisam deixar um tempo para atividades de lazer.
Experiências com as características citadas anteriormente são observadas em várias partes do mundo. O site Platform.coop possui um cadastro com mais de 500 organizações oriundas de mais de 30 países. Por exemplo, no Reino Unido existe a Co-operative Newsé, um dos jornais cooperativos mais antigos do planeta. Foi fundado em 1871 por jornalistas e leitores, e o sucesso foi tamanho, que logo outras inciativas surgiram formando uma rede global de cooperativas dedicada a fornecer cobertura jornalística em todo o mundo.
Na França, trabalhadores criaram a CoopCycle, uma federação de cooperativa de entrega por meio de bicicletas. Esta desenvolveu uma infraestrutura tecnológica que apoia a criação de novas cooperativas de plataforma em todo o mundo. A iniciativa já possui mais de 70 cooperativas associadas, cujo objetivo é tornar a remuneração mais justa e propiciar o trabalho com mais qualidade de vida.
No Brasil, as experiências ainda são embrionárias e carecem de fundamentalmente de apoio público. Destaca-se, por exemplo, um projeto desenvolvido pela Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esportes da Bahia, que prevê apoio técnico especializado para a criação de um aplicativo para o gerenciamento da logística de entrega, bem como de uma cooperativa de plataforma fundada a partir dos próprios trabalhadores do setor, ou seja, moto e bike entregadores e, considerando, sobretudo, os fundamentos da economia solidária. É importante destacar que a experiência baiana é a pioneira no Brasil que prevê a doação da propriedade da tecnologia à própria cooperativa ao final do projeto, se constituindo, assim, como um mecanismo importante para a luta de classe. Já que, à medida que o capitalismo se desenvolve por meio de novas formas de produção, há também a possibilidade desses mesmos instrumentos tecnológicos serem experimentados a partir da lógica da classe trabalhadora.
Nesse sentido, a regulamentação do Trabalho Digital no Brasil deve considerar, também, o desenvolvimento de uma política nacional que reconheça o cooperativismo de plataforma de característica solidário e autogestionário, a disponibilidade de incentivos diversos que permitam a criação de um forte ecossistema cooperativista solidário, composto por governos, universidades e trabalhadores, e que abra caminhos para se desenvolver soluções tecnológicas livres, associadas a melhores rendas e aumento da qualidade de vida no ambiente familiar.
[1] Superintendente de Economia Solidária e Cooperativismo da Secretaria do Trabalho da Estado da Bahia. Professor universitário. Mestrando em Direito / UNIFACS.
[2] Coordenador de Formação em Economia Solidária e Cooperativismo da Superintendência de Economia Solidária e Cooperativismo. Pesquisador. Doutorando em Engenharia Industrial/PEI-UFBA