Confira a entrevista completa:
Quando a militância política está no sangue, fica difícil se desvencilhar da vida pública. Quando isso é uma vocação, fica mais aceitável adequar a vontade com a realidade. É assim que foi e que é com a secretária estadual de Promoção da Igualdade Racial e dos Povos e Comunidades Tradicionais (Sepromi), Ângela Guimarães (PCdoB).
A trajetória política dela é cheia de interseções com a sua vida particular. Desde o despertar para a luta coletiva na infância, ouvindo os familiares conversando sobre a situação do país e do mundo após o almoço de domingo na casa da avó, no Curuzu, passando pelo início da vida universitária e a concretização da militância, que passou a preencher as suas manhãs, tardes e noite (nas madrugadas também) desde então, até a participação direta na formulação de políticas de afirmações raciais do início do século XXI no país.
Em conversa com A TARDE, a titular da Sepromi relembrou seu passado, o presente de luta constante e revelou ter a esperança de um futuro no qual as novas gerações de homens e mulheres negras possam viver em um mundo mais igual.
A sua trajetória política se confunde com a sua vida pessoal. Como a convivência com a sua família contribuiu para a sua militância?
Minha família é uma família negra grande. Meus avós tiveram 12 filhos, três morreram, sobreviveram nove, e a gente sempre conversava muito nas festas de família, aos domingos, sempre ali, no Curuzu, na casa da minha vó, e sempre se contava muito a história da família. Sempre ouvi meus tios e minhas tias falando da história do bairro, minha vó falando como chegou para morar lá, que coincidiu com essa organização popular e comunitária pela urbanização do bairro.
Então, hoje o que é a Liberdade, antigamente era muito distante. As ruas não eras urbanizadas, eram poucas casas, a luz era de candeeiro, a ligação de água não existia. Então, os meus avós, sobretudo, meu avô, participou muito dessa luta pela urbanização do bairro, junto com outras lideranças populares de lá. Então, você já acaba tendo essa referência, de precariedade e luta coletiva para conquistas.
Os meus tios, eles já foram da geração que contribuiu com a criação do bloco Ilê Aiyê e participaram de toda essa movimentação dos anos 1970, as influências da política internacional, a independência dos países africanos que eram colonizados pela Europa, o surgimento do movimento black panther, nos Estados Unidos, a Marcha sobre Washington, Martin Luther King, Malcom X… toda essa efervescência de debate e também aqui no Brasil uma ditadura militar com o movimento popular organizado, movimento cultural, o movimento negro, a esquerda, o sindicato, o movimento estudantil. Meu pai foi do PCB, militou na clandestinidade na ditadura, minha mãe foi professora do Colégio Central, que tem uma tradição de um movimento docente.
Como isso contribuiu na prática com a sua visão de mundo?
Quando você é criança, você não sabe nomear o que é racismo, o que é machismo, nada disso, mas você passa na pele. Fui uma criança negra, de periferia, em escola, na qual você era sempre a preterida das brincadeiras, a preterida do carinho, preterida de ser a rainha do milho, a preterida de várias coisas, e você vai vendo que em casa a cor da pele é valorizada, você é tão amada na família, tudo que está na experiência dessa família negra é positiva e na escola não.
Então, eu fui crescendo um pouco mais e me dando conta desses processos, sabendo nomear, aprendendo com meus tios e minhas tias. Eu lembro que minha família sempre teve muito essa cultura de, no domingo, conversar. Terminar de almoçar e conversar. Eu ficava com os olhos atentos assim, ouvindo cada história. Eu tenho uma tia, que hoje é minha comadre, e ela era aquela que não aceitava injustiça, que discutia, que ocupava o espaço de poder no trabalho dela, funcionária pública e eu dizia: “quando eu crescer, eu quero ser igual a ela, eu não vou comer reggae”. Eu vou discutir, eu vou botar dedo na cara… eu achava ela meio que uma heroína pra mim. Além disso, lá na casa tinha muito livro, tinha muita revista, tinha muito jornal internacional, porque meus tios tinham conexões com pessoas de outros países, enfim, eu não sei se propositalmente eu fui uma consequência, não vou dizer aleatória porque não tem aleatoriedade nisso, mas tudo isso ajudou a me forjar nesse lugar de participação política, nesse lugar de estar na cena pública disputando os rumos da sociedade.
Mas a militância de fato só começou na universidade, certo?
Na universidade que deu forma, porque se eu for pegar da minha infância, na primeira eleição da redemocratização, a gente já se envolveu campanha. Eu lembro que meu pai, os vizinhos conduziram uma eleição entre as crianças. Tinha uma votação entre as crianças e outra entre os adultos. Entre as crianças Lula já ganhava desde 1989. É importante que a gente ressalte que as crianças sempre tiveram certeza do melhor projeto para o Brasil. Eu lembro que a gente se engajou nisso, alguns eram Brizola, outros eram Lula, enfim, a gente estava de algum jeito com uma compreensão, ainda limitada, eu com oito ou sete anos de idade, aprendido a ler era o máximo que eu sabia, mas a gente já participava daquela eleição. Depois nas eleições de 1994 e 1998 eu, adolescente, ia com minha prima, no dia da eleição, acompanhar a boca de urna.
Então, aquilo foi fazendo isso crescer em mim. Eu estudei em escola pública a vida inteira, não tinha grêmio na época, mas no último ano a gente ajudou a formar o grêmio, mas eu acabei saindo pra ir pra universidade. Aí sim, na universidade essas experiências todas foram ganhando forma.
Entrou na universidade quando?
Em 2000.
No segundo governo FHC…
Isso. A universidade estava sucateada. Não dinheiro para pagar conta de luz e conta de água, o prédio onde eu estudava em São Lázaro alagava. Aí o movimento estudantil na UFBA sempre foi muito forte e muito politizado, discutindo mundo, país e local e aquilo foi me chamando atenção. Eu já tinha contato com a literatura, porque sempre fui muito estimulada a ler, então eu já tinha lido Marx, já tinha lido Engels, já tinha lido a “História da Riqueza do Homem”, lia revistas do terceiro mundo, sobre a independência dos países africanos. Na universidade, a primeira coisa que mais me chamou a atenção foi o Coletivo de Estudantes Negros da Bahia participando de seminários, depois vieram as manifestações do “Brasil: outros 500”, que veio para contestar as comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil, comecei a me engajar, entrei na primeira disputa de centro acadêmico, ganhei, tomei gosto e no ano seguinte fui para o Diretório Central de Estudantes da UFBA. Eu presidi o DCE no contexto da aprovação das pautas raciais nas universidades, uma época de efervescência muito intensa. A gente foi fazendo um movimento nas universidades, tanto que quando o projeto de lei foi aprovado no Congresso já tinha mais de 60% das universidades públicas com cotas raciais.
Nesse meio tempo, surgiu a Sepromi, lá no primeiro mandato de Jaques Wagner como governador. De lá para cá, o que considera que teve avanço com a criação da pasta para as políticas afirmativas para a população negra no estado?
Eu acho que em nível de Brasil, a maior revolução das ações da políticas de igualdade racial são as ações afirmativas nas universidades. Eu acho que é o que há de mais denso, o que é mais perene, o que é mais contabilizado, o que é mais visível, o que alterou para sempre o rumo da universidade brasileira. Porque isso obrigou a universidade a olhar para dentro e isso está promovendo uma transformação curricular, isso transforma os objetos, os temas de pesquisa, isso provoca uma série de alterações na programação.
Agora você tem seminários de ações afirmativas, com discussão das cotas, discussão do enegrecimento da pesquisa, da extensão, você vai pautando aquele espaço para que aquele espaço possa estar atento às demandas da maioria da sociedade, porque essas pessoas negras que chegam, elas chegam com outros pontos de vista, com outras experiências, com outras agendas políticas, com outra forma de fazer. Então, eu acho que o que é mais assim, perene, duradouro, impactante é exatamente as políticas afirmativas nas universidades, porque é como se fala, é um cenário muito diferente. Com as cotas a gente viu um movimento também de interiorização da universidade, de expansão dos campi com cursos noturnos, que a universidade não tinha, então eu considero que a política de cotas foi um divisor de águas.
A outra questão que eu acho que também é importante, é a criação da Seppir [Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial] em 2003, com um conjunto de legislações que derivaram na existência de um primeiro Ministério da Igualdade Racial, mas também da força mobilizadora do movimento negro e que marca uma presença nesse tempo atual de urgência do debate da luta antirracista. Então hoje, nos episódios, nos encadeamentos de fatos que antes o Brasil nomeava de qualquer outra coisa, hoje as pessoas sabem que é racismo. Hoje as pessoas sabem que João Alberto de Freitas foi esganado até a morte por uma orientação racista, as pessoas sabem que George Floyd foi também esganado até a morte pela atuação racista da polícia nos Estados Unidos, as pessoas sabem que, no BBB, o embate que está tendo e para ser uma coisa bem atual, é por uma motivação racista.
Então, a emergência desse tema e colocá-lo de forma tão presente na agenda pública nacional eu também reputo, além da ação dos movimentos organizados, o fato de o Estado ter se aberto para encarar o fato porque, durante muitos anos, o Estado se passou, colocou para debaixo do tapete, tangenciou, e fugiu do debate. Quando eu entrei na universidade, as pessoas encontravam mil e um subperfúgios para quererem justificar porque aqui, em um estado negro, a maioria dos estudantes não eram negros. Pelo fato da gente não ter nenhuma professora negra, a gente não estuda nenhuma disciplina com autores e autoras negras. Então, eu considero que essas duas questões mudaram para sempre a arquitetura, o desenho da sociedade brasileira.
Agora, há outros tantos temas que a sociedade brasileira ainda é devedora. O tema da proteção a vida das pessoas negras, desde a concepção até a até a velhice. É uma negligência, um descaso pelo fato das mulheres negras não conseguirem acessar à saúde pública, o fato de não conseguirem, quando engravidam fazer todas as suas consultas pré-natal, de morrerem por mortes evitáveis quando estão grávidas, de crianças negras também morrerem de desnutrição, não tem essa segurança alimentar nutricional, não ter acesso à creche, depois, os adultos negros não conseguirem se inserir na dinâmica socioeconômica, porque o racismo somado ao sexismo são barreiras que impedem, por exemplo, que mulheres negras estejam em locais de supervisão, de coordenação, de diretoria de empresas e também do setor público, por isso a importância do recente decreto de Lula reservando 30% das vagas dos cargos em comissão para pessoas negras.
Além dessa negligência do sistema público, a negligência das estruturas que deveriam proteger as pessoas. A gente tem uma política de proteção às mulheres que tem resultado em uma diminuição dos feminicídios de mulheres brancas, mas que têm resultado em um volume três vezes maior de mulheres negras vítimas de feminicídio, porque se você não enfrentar o machismo e o racismo, você não dá conta de atender as mulheres negras com as necessidades que elas têm: o acesso ao mercado de trabalho que eu já falei um pouco, o acesso à moradia, que foi totalmente interrompido durante o governo Bolsonaro, porque quando você faz política para a base da pirâmide, necessariamente você está atingindo as famílias negras, as famílias chefiadas por mulheres negras, quando essas políticas são interrompidas, a sobrecarga da desigualdade é ainda mais acintosa na vida das pessoas.
A representação nos espaços de poder também é totalmente rara. Isoladamente, as mulheres negras são 28% da população e são menos de 5% no Congresso Nacional. Aqui na Bahia, a gente nunca teve uma governadora mulher, muito menos negra, Salvador nunca teve nenhum prefeito, nenhuma prefeita, negros ou negras, eleitos. Teve um interventor. A gente tem um débito acumulado de 523 anos, a gente tem a presença das consequências do escravismo colonial, da persistência do racismo, cada vez mais sofisticado, cada vez mais contemporâneo…
A senhora falou da mudança nas universidades públicas com as cotas raciais para o acesso de estudantes. No corpo docente, contudo isso ainda não é uma realidade. Há poucos professores negros. De que forma mudar isso?
Na verdade já tem, mas há também uma forma de burla do mecanismo da política afirmativa. Nesse caso, a Bahia responde a lei estadual que, é o Estatuto da Igualdade Racial e Combate a Intolerância Religiosa, na lei nacional são 20%, aqui são 30%. Então, você pode, dentro das 20 vagas, por exemplo, 30% reservar e distribuir por um número X de departamentos. Aí, no próximo concurso, você já inverte. Esses que já foram tiveram a cota você joga para outros departamentos.
Então, já há mecanismos legalizados, reconhecidos e inquestionáveis. Mas há um sistema de poder visível e invisível nesses espaços. O visível é você olhar ali a cara de quem ocupa as reitorias, as pró-reitorias, as coordenações de cursos, as diretorias de unidades, e os invisíveis são esses mecanismos que, se forem mantidos do jeito que estão, eles são impermeáveis à inclusão socio racial. Então, a gente precisa chacoalhar. Se mantiver tudo do jeito que está, não vai entrar nenhum docente negro, nenhuma docente negra. Cada departamento não pode abrir o concurso na hora que quer, vamos fazer um bloco de vagas organizado, para, no bloco, você conseguir fazer a aferição e a reserva de cotas.
O governador Jerônimo Rodrigues já deu indícios de algum avanço nesse sentido nas universidades estaduais?
Acredito que a gente está amadurecendo bastante o debate. O governador é completamente favorável às políticas afirmativas e a preocupação dele é sim corrigir as distorções históricas. Então não é à toa que ele mantém e aprofunda políticas como, por exemplo, a política do “Primeiro Emprego”, não está ali descrito na política que é para pessoas negras, mas 83% do público do programa no estado são de pessoas negras e mais de 70% são mulheres negras.
Quando você vai para o “Bolsa Presença”, que também são estudantes, negros ou de famílias mais vulneráveis, e garante aquele valor de uma bolsa para o vínculo e deter a evasão do ensino médio que é gigante em todo o Brasil. Quando você vai para essas políticas, como o “Bahia Sem Fome”, lá dentro dos públicos, a população negra, o povo das comunidades tradicionais, povos indígenas, das periferias urbanas e zonas rurais, você vai ver lá que o público de mulheres chefes de família solo com filhos de até 14 anos também é um público prioritário. E aí você vai ver que a maioria delas são mulheres negras, trabalhadoras domésticas, catadores e catadores de materiais recicláveis são pessoas negras.
Essa situação das universidades sem dúvida vai precisar passar por aperfeiçoamento. Porque a gente tem aí universidades pioneiras aqui como é o caso da UNEB, que foi a segunda universidade no Brasil a implementar as cotas, mas que, por exemplo, houve um questionamento no último concurso deles, justamente por essa não aplicação das cotas. Então, a gente está buscando amadurecer isso nas próprias universidades para ter uma regulamentação que valha de forma uniforme pra todos os processos de seleção dos professores e professoras.
Voltando um pouco na sua trajetória, logo que você se formou, foi trabalhar em São Sebastião do Passé. Fala um pouco dessa experiência por lá.
Assumi uma diretoria no Departamento de Reparação Social. Eu já vinha desse acúmulo aí da luta da juventude, do movimento negro, do movimento de mulheres, do engajamento associativo, do movimento estudantil, da “Revolta do Buzu”, das cotas, da cassação de ACM, dessa geração aí. E lá, assim, foi um trabalho, para mim, muito prazeroso, muito gratificante e que me deu régua e compasso para fazer gestão. Pela primeira vez eu estava do outro lado do balcão.
Antes, eu era quem reivindicava, então eu tive que passar para o lado de cá com 24 anos, acolher e fomentar uma demanda social. Embora aqui em Salvador tenha muito movimento organizado, no interior não necessariamente tem. Ainda mais naquela altura. Estava em uma cidade de maioria negra, que nem todo mundo se achava negro, em uma cidade que era tabu falar de violência contra as mulheres, em uma cidade que não tinha grêmio estudantil, nenhum movimento de juventude organizada e eu fui para lá, nos eventos do governo Lula da época fazendo conferência de tudo, criando conselho de tudo, criando organismo gestor de tudo, um pouco para espelhar o que era feito pelo Governo Federal.
Então, a gente constituiu as primeiras políticas para a juventude, a gente levou um polo da Universidade Aberta do Brasil, a gente construiu a rede de atendimento às mulheres em situações de violência, levou um núcleo de atendimento à mulher, com equipe multidisciplinar…, foi uma experiência muito enriquecedora. Primeiro porque eu tinha pouca maturidade de gestão e, segundo, porque foi um despertar daquela cidade para esses temas e passou a acolher algumas demandas que estavam ocultas, individualizadas, como foi a demanda dos terreiros.
A gente contabilizou lá mais de 130 terreiros, na vida social da cidade uma festa tradicional, que era a Lavagem do Padroeiro, tinha sido esvaziada, desmobilizada. A gente buscou resgatar porque era uma lavagem ao espelho da Lavagem do Bonfim, onde as baianas tinham um grande protagonismo. Eu tive que ir para esse lugar de gestora, de proponente, de desenhar política pública, de articuladora, porque esse espaço tinha poucos recursos, pouco orçamento. Então, tudo que eu fazia, eu precisava fazer em parceria com outras secretarias.
Depois disso que foi trabalhar na gestão da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). Quanto tempo trabalhou no Governo Federal e quais cargos ocupou?
Em 2011, eu fui convidada pela presidenta Dilma para assumir a presidência do Conselho Nacional de Juventude e a Secretaria Adjunta da Secretaria Nacional de Juventude. Eu fiquei seis anos lá, o tempo que durou o governo dela. Depois voltei para a Bahia e fui para a Setre [Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte do Governo da Bahia]. onde eu ocupei várias funções. Fui chefe de gabinete, assessora especial e antes de vim para cá [a Sepromi] eu estava na coordenação de políticas de fomento ao artesanato.
Quando Jerônimo foi eleito, logo que começaram as especulações sobre formação do secretaria já se falava muito do seu nome na Sepromi e parecia que já estava tudo meio encaminhado para você ir para o cargo. Como é que foi esse convite?
Não foi tão fácil assim não. Porque, na verdade é assim, eu venho de partido. Eu sou filiada ao PCdoB há vinte e três anos. E o partido tem uma dinâmica própria. Nunca é assim a pessoa em primeiro lugar, são os objetivos do partido naquele lugar, é o projeto que a gente faz parte para depois chegar na pessoa.
Então, embora eu compreenda que tinha uma especulação, compreendo também que meus companheiros de geração do PT, do PSB e de outras siglas, porque fizemos parte juntos, durante muito tempo, já tinham esse anseio. Não estava no meu horizonte [ser secretária]. Não vou dizer para você que era uma coisa que eu almejava, que eu sonhei, mas eu valorizo muito e estou muito feliz onde eu estou, dando o meu máximo, como tudo que eu fiz na minha vida.
Eu sigo bem os ritos do partido, porque nós somos um partido que tem uma democracia interna, tem um processo, tem um amadurecimento, são sempre decisões pautadas na compreensão coletiva e não só na vontade individual. Então, eu fiquei muito lisonjeada porque, eu participei de todos os capítulos da construção dessa Secretaria e de Políticas de Promoção da igualdade Racial na Bahia, porque a gente viveu do final dos anos 1990 para cá um momento de muita efervescência desse debate da luta antirracista no Brasil e na Bahia.
Para mim foi um convite honroso, que me emocionou e que me atribuiu ainda mais nessa luta que eu sempre levei com muita responsabilidade. Eu comecei muito jovem e essa luta social, essa luta antirracista, luta da juventude, a luta das mulheres, custaram e custam muitos dias e muitas noites da minha vida. Então, eu encaro isso com muita responsabilidade com o presente, com as mudanças que a gente pode fazer na vida das pessoas hoje, porque a gente tem pressa para corrigir as distorções, as desigualdades raciais, sociais, econômicas, de gênero, mas também com a perspectiva de futuro. Do que a gente pode deixar para as próximas gerações.
A senhora falou sobre a luta racial e a juventude. Jovens negros são as principais vítimas de mortes violentas no estado, inclusive por parte da Polícia Militar. Quais as possibilidades de diminuir essa violência contra a população negra?
Em primeiro lugar, eu acho limitado reputar as ações violentas à Polícia Militar. Porque na verdade nós temos um pacto social que despreza a vida negra desde a sua concepção, como eu já me referi aqui. O fato de você não ter cobertura universal de saúde pública nos bairros, nas cidades, nas capitais, Salvador por exemplo, é a pior cobertura do SUS entre todos as capitais do Brasil. Já é um sintoma muito grave do descaso, porque as famílias negras são a maioria das famílias em situações de pobreza.
Então, aqui, as famílias negras dependem exclusivamente do investimento público estatal para ter acesso aos direitos. Não tem como pagar plano de saúde, não tem como pagar escola, não tem como pagar creche, não tem como pagar moradia em lugar com infraestrutura, então fica sempre nas pirambeiras, nos becos, nas vielas, nos lugares sem saneamento básico.
O Estado brasileiro como um todo, ele é muito devedor à população negra. Ele deve moradia de qualidade, ele deve tratamento de água, ele deve saneamento básico, acesso à creche, acessa a trabalho, emprego e renda a oferta de alimentação saudável e de qualidade. Então, a ponta do iceberg é uma estrutura de opressão das forças de segurança.
O que se expressa na Segurança Pública é um pacto que a sociedade tende a desqualificar as vidas negras. A gente precisa é romper com esse pacto. Eu gosto muito de uma fala de Elisa Lucinda que ela pergunta o seguinte: “A gente gosta de ver o racismo e o escravismo como algo do passado. Se a gente transportasse uma pergunta do século XVI, XVII e XVIII para agora. Você é um abolicionista ou você é um proprietário de escravos?”. A pergunta hoje ainda vale.
Nós, enquanto sociedade, vemos um Judiciário julgar um menino branco e um menino negro com a mesma quantidade de droga e tratar um como usuário e o outro como traficante. A gente se insurge como¿ Nós, enquanto sociedade vemos nos programas de meio-dia de todo Brasil a exposição e a estigmatização dos corpos negros, a gente faz o quê? Nós, a sociedade como um todo, vemos os corpos diretivos de empresas tomarem decisão que impedem a ascensão de mulheres negras aos espaços de poder, a gente faz o quê?
A burla dos mecanismos de cotas para ampliar a presença negra de mulheres nas eleições, que são sistematicamente fraudados por todos os partidos, a gente faz o quê? Porque se a gente não se insurge quanto a isso, nós estamos fazendo o papel daqueles proprietários escravos que não queriam mudar a ordem vigente, porque a gente não está fazendo nada pra mudar essa ordem.
Eu diria que é necessário discutir a reforma da segurança pública sim, é necessário ter uma política que proteja, que desenvolva uma segurança pública preventiva, mas nós precisamos questionar a sociedade como um todo, porque alguém autoriza a manutenção dessa ordem. É confortável para quem? Quem se sente seguro com a polícia do jeito que é? A gente vai questionar. Se tem alguém se sentindo seguro, tem alguém autorizando a polícia continuar nesses padrões. Precisamos de abolicionistas da contemporaneidade em todas as dimensões da vida da sociedade.
Uma das razões de ser da Sepromi é a interiorização das políticas públicas para a promoção da igualdade racial. Quais ações são feitas nesse sentido?
Nós temos alguns mecanismos de gestão. Nós temos os Fóruns Estadual de Gestores e Gestoras Municipais de Política de Igualdade Racial que se reúnem durante o ano e é por meio desses fóruns que a gente tanto escuta e elabora as nossas ações, quanto a gente também fomenta a municipalização de ações estaduais que a gente desenvolve.
Claro que isso tudo com muita dificuldade, os organismos de igualdade racial dos municípios são ainda mais frágeis do que a nossa estrutura da Sepromi. Muitos não têm orçamento, estão dentro de outras áreas, às vezes não conta com a sensibilidade do gestor da secretaria, ou é algo muito novo, ou é algo que foi criado, extinto, criado de novo, dependendo de quem é o prefeito ou a prefeita, mas a gente atua desse jeito, a gente atua em linha com os três conselhos que fazem parte da estrutura. O Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra, O Conselho de Desenvolvimento Sustentável dos Povos de Comunidades Tradicionais e o Conselho Estadual dos Direitos dos Povos Indígenas da Bahia.
Nós articulamos essa transversalidade da agenda de promoção da igualdade racial com outras secretarias, como Educação, Saúde, Cultura, Desenvolvimento Rural, Infraestrutura Hídrica e sempre procuramos atender essas questões das ações nos vários territórios de identidade do estado.
E o seu futuro político, secretária? Pensa em disputar cargos eletivos?
Eu fui candidata em 2020 a vereadora. Fiquei na suplência. Eu venho atuando de forma coletiva há tanto tempo que eu costumo dizer que eu sou uma soldada do partido. Eu sou uma pessoa que eu estou disponível para as batalhas políticas, então, nossos trabalhos nos ensinou que ou a gente vem estando pronto ou então a gente nem vem. Então, eu considero que eu estou pronta e que eu estou disponível para quaisquer batalha. No começo, quando a gente tem muita insegurança, nunca foi testada, nunca passa por alguns processos, aí será que é o caso? Não, eu acho que é o caso. E eu estou disponível, estou pronta, sem arrogância nenhuma, mas compreendendo que a maturidade do exercício no movimento social, na gestão pública, na no campo da intelectualidade também dão condições e ferramentas para me apresentar disponível para o meu partido, para o meu campo político para desafios maiores.